Pesquisar este blog

quarta-feira, 6 de abril de 2011

CONTRATOS DE GESTÃO. CONTRATUALIZAÇÃO DO CONTROLE ADMINISTRATIVO SOBRE A ADMINISTRAÇÃO INDIRETA E SOBRE AS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS

CONTRATOS DE GESTÃO. CONTRATUALIZAÇÃO DO CONTROLE ADMINISTRATIVO SOBRE A ADMINISTRAÇÃO INDIRETA E SOBRE AS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS


Maria Sylvia Zanella Di Pietro*

________________________________________

1. NOÇÃO

O contrato de gestão foi idealizado no direito francês como meio de controle administrativo ou tutela sobre as suas empresas estatais. Mas, antes disso, o contrato de gestão já era utilizado como meio de vincular a programas governamentais determinadas empresas privadas que recebiam algum tipo de auxílio por parte do Estado. Mais recentemente, os contratos de gestão passaram a ser celebrados com os próprios da Administração Direta, portanto, com entes sem personalidade jurídica própria; são os chamados centros de responsabilidade que se comprometem, por meio do contrato de gestão, a atingir determinados objetivos institucionais, fixados em consonância com programa de qualidade proposto pelo órgão interessado e aprovado pela autoridade competente, em troca, também, de maior autonomia de gestão.

O simples fato de ser celebrado com um órgão sem personalidade jurídica já demonstra que o vocábulo "contrato", no caso, só é empregado, provavelmente, porque não se conseguiu outro melhor, já que, na realidade, não se trata de verdadeiro contrato, que supõe que ambas as partes tenham personalidade jurídica própria.

A idéia, em relação às empresas estatais e aos centros de responsa-bilidade, é a de, por meio do contrato de gestão, fixar compromissos bilaterais: a) para a empresa ou órgão, o de cumprir determinados objetivos fixados em planos nacionais ou em programas pré-definidos pelas partes; b) para a Administração Pública, o de flexibilizar os meios de controle sobre a entidade, conferindo-lhe maior grau de autonomia na gestão dos negócios.

No direito brasileiro, o contrato de gestão vem sendo celebrado com empresas estatais, com o mesmo objetivo visado no direito francês; mas também com outro tipo de entidade, que poderíamos incluir na categoria de entidade paraestatal, do tipo dos serviços sociais autônomos e das chamadas organizações sociais.



2. DIREITO FRANCÊS

No direito francês, tais contratos têm sido utilizados com denominações diversas em fases sucessivas: contratos de programa, contratos de empresa, contratos de plano, contratos de objetivos.

André de Labaudère, Pierre Delvolvé e Frank Moderne (Traité des contrats administratifs, Paris: Librairie Générale de Droit et Jurisprudence, 1983, t. 1:423 e ss.) cuidam desse contrato sob o título de "contratos discutíveis", explicando que os mesmos revelam a existência de um certo acordo, "sem que se possa assegurar nem que eles são verdadeiros contratos, nem que eles não são. Nenhuma das categorias que eles comportam corresponde em si mesma a verdadeiros ou a falsos contratos. Cada contrato deve ser examinado isoladamente para que uma resposta possa ser efetivamente dada."

O assunto é tratado, por muitos autores, dentro do tema do controle ou tutela que a Administração Pública exerce sobre as empresas estatais. É o caso de Michel Duruply (Les entreprises publiques, Paris: Presses Universitaires de France, 1986, v. 2:354 e ss.), que, ao analisar o tema do controle das empresas públicas, insere um capítulo denominado "a contratualização do controle prévio", precisamente para referir-se àqueles tipos de contratos.

Para ele, "admitida tanto pelos liberais como pelos socialistas, a contratualização das relações de controle conheceu muitas fases diferentes que correspondem a conteúdos sensivelmente distintos. Em um primeiro momento, os contratos de programa (grifamos), inspirados essencialmente pelo relatório Nora, tiveram por objetivo permitir a recuperação financeira das empresas públicas deficitárias... Estes contratos deviam permitir o restabelecimento do equilíbrio de sua gestão, fixando para os ramos mais sensíveis do setor público objetivos relacionados com aqueles do plano nacional."

Veio depois um período em que o governo não se interessava muito pelas planificações; além disso, a crise financeira dos anos 70 fez desaparecer os resultados financeiros alcançados pelos contratos de programa. Em conseqüência, passou-se para uma segunda fase, em que os contratos de programa vão ser substituídos pelos contratos de empresa, que "se tornam o meio de obrigar as empresas públicas a se modernizarem, desembaraçando-se de seus excedentes de pessoal, transformando profundamente seus métodos de gestão, investindo mais nas tecnologias modernas suscetíveis de dotá-las de maior competitividade."

Em uma terceira fase, surgem os contratos de plano, adotados pelos governos a partir do ano de 1981 e que obedecem a uma filosofia diferente. Segundo o mesmo autor, "renovando a tradição anterior dos planos nacionais, esses governos vão utilizar os contratos de plano com suas empresas públicas, para assegurar o desenvolvimento dos objetivos prioritários. As empresas nacionais vão ver atribuir a si um papel determinante no desenvolvimento das políticas de emprego, de investimento, de reestruturações, de adoção de novas tecnologias ou na formação profissional dos assalariados".

A idéia básica é a de, por meio de contrato, levar a empresa a alcançar determinados objetivos fixados no contrato, coerentes com o Plano de Governo, e, em troca, assegurar maior autonomia para a empresa e, em conseqüência, facilitar e diminuir o controle sobre suas atividades. As atividades de controle e direção, que com muita freqüência se misturam nas formas tradicionais de tutela, ficam mais nitidamente separadas, já que a empresa ganha autonomia na gestão e a Administração direta se limita a verificar se os resultados foram alcançados.

Os contratos de empresa eram reservados àquelas que exercessem atividades industriais ou comerciais sem viabilidade de competição; o objetivo era dotá-las de competitividade. Ao contrário dos contratos de programa, os contratos de empresa não têm seus objetivos vinculados ao Plano nacional. Neles, são estabelecidos objetivos específicos para cada empresa. A característica comum em todos eles é a busca de saneamento financeiro, pela fixação dos meios adequados para atingir a esse objetivo. Segundo Duruply (ob. cit., p. 375), "trata-se, de fato, de elucidar, no déficit dessas empresas, a parte que corresponde a encargos pelos quais elas não têm a responsabilidade e sobre os quais elas não podem exercer nenhuma ação corretiva. Além disso, o déficit correspondente à responsabilidade real dessas empresas deve ser igualmente isolado, a fim de que seja possível definir o domínio no qual os esforços de saneamento financeiro devem ser assumidos pelos dirigentes. Em contrapartida pelas imposições do Estado, são estipuladas compensações claramente definidas, permitindo assim o restabelecimento de uma situação mais sã."

Já os contratos de plano eram celebrados preferencialmente com empresas públicas de caráter concorrencial e industrial (Duruply, ob. cit., p. 356-7). Essa etapa, iniciada em 1981, caracteriza-se com o retorno à planificação como instrumento do desenvolvimento econômico e social e por uma acentuação das relações contratuais entre o Estado e suas empresas. O objetivo é fazer com que as empresas estatais ajustem as suas estratégias à estratégia industrial do Estado.

Também em relação aos contratos de plano verificava-se a intenção do Governo de flexibilizar o controle administrativo sobre as empresas estatais. Conforme observa a Fundação Escola Nacional de Administração Pública - ENAP (in O contrato de gestão no serviço público, Brasília, ENAP, 1993:54), "o contrato de plano, apoiado na experiência francesa de planejamento indicativo, tentou possibilitar simultaneamente a realização do controle do Estado e a manutenção da autonomia de gestão das empresas. Ele buscou estabelecer uma relação entre a lógica do controle financeiro, baseada em resultados contábeis, e uma lógica de planejamento, fundamentada nas orientações advindas do Plano Nacional. Como pressupõe uma negociação entre a tutela e a direção da empresa, o contrato implicou uma melhor formatização da estratégia industrial e da definição dos objetivos por parte do Estado, bem como um melhor fornecimento de informações ao Estado-acionista por parte da empresa".

Na mesma obra, verifica-se que, em 1988, "o Ministro da Indústria enviou uma carta às empresas submetidas a sua tutela definindo um novo procedimento intitulado contrato de objetivos (grifamos)... O contrato de objetivos é um documento anual, síntese dos principais pontos estratégicos e financeiros do plano estratégico da empresa. Ele apresenta um consenso entre Estado e empresa, obtido a partir de três documentos: o plano da empresa para três ou quatro anos, um plano de previsão financeira e um resumo estratégico do plano da empresa."

Verifica-se, portanto, que em todos os modelos citados há uma preocupação em submeter as empresas estatais aos objetivos governamentais, quer pela sua adequação a planos nacionais, quer pela sua submissão a objetivos prioritários fixados pelas partes interessadas; paralelamente, confere-se maior autonomia às empresas, diante do compromisso que assumem contratualmente, reduzindo-se o controle por parte da Administração Pública. Daí falar-se em "contratualização do controle".

Há que se assinalar que esse tipo de contratualização estendeu-se, posteriormente, aos próprios órgãos integrantes da Administração direta, chamados "centros de responsabilidade". Segundo a ENAP (ob. cit.,

p. 62), "os centros de responsabilidade, que começaram a ser criados a partir de 1990 em caráter experimental na França, são órgãos que se beneficiam, através da realização de um contrato, de flexibilizações do controle administrativo sobre sua gestão, ao mesmo tempo que se propõem a adotar determinados procedimentos e compromissos. Inicialmente, para se tornar um centro de responsabilidade, o órgão precisa ter desenvolvido um projeto de serviço, ou seja, ter feito uma definição rigorosa de objetivos e adotado métodos de avaliação dos resultados".

"As flexibilizações de gestão consentidas ao centro de responsabilidade podem englobar: - liberdade para o responsável do centro fazer deslocamentos internos; - possibilidade de criar comissões administrativas paritárias locais; - concessão de uma dotação global para pagamento de gratificações e trabalhos suplementares; - liberdade para distribuição — com amplitude constante — dos horários de trabalho e sua globalização num quadro anual; - concessão de uma dotação orçamentária global de funcionamento; - supressão do controle financeiro prévio local; - adaptação de regras e práticas internas do ministério responsável, tais como a elevação do nível de competência entre a administração central e o centro de responsabilidade, a diminuição de certos prazos, a aplicação de uma organização mais racional, assim como todas as facilidades complementares levando em conta as especificidades de cada órgão; - em termos de créditos de equipamentos, alocação de dotações permitindo a realização de programas fixados no orçamento apresentado pelo centro; - liberdade para usar as economias feitas em relação ao orçamento anterior, principalmente para desenvolver serviços sociais (creches, cheques-viagem, dentre outros) e melhorar as condições de trabalho ou de serviço e atendimento aos usuários." (ENAP, ob. cit., p. 63).

Há que se observar que todas essas modalidades citadas dizem respeito a acordos celebrados pelo Estado com suas próprias entidades ou órgãos, todos eles integrantes da Administração Pública em sentido amplo.

Os contratos de plano, que já eram firmados com empresas privadas bem antes de serem instituídos para as empresas estatais, são, segundo Laubaudère, Delvolvé e Moderne (ob. cit., p. 423-427), celebrados entre o Estado, de um lado, e as regiões, as empresas e eventualmente outras pessoas jurídicas, de outro, com o objetivo de garantir a execução do Plano. Por meio desses contratos, as partes assumem obrigações recíprocas; eles não podem ser rescindidos pelo Estado, antes da data normal de expiração do prazo, senão pela forma e condições estipuladas expressamente.

Essas chamados "contratos de plano" têm uma natureza mista, uma vez que contêm cláusulas tipicamente contratuais, ao lado de disposições genéricas, que ficam dependendo de acordos futuros sobre determinados aspectos, permitindo enquadrá-los, quanto a esse aspecto, entre as "convenções-quadro"; além disso, a convenção pode não reger somente as relações entre as partes, mas conter normas que aproveitam a terceiros, com a natureza de verdadeiras normas regulamentares, à semelhança do que ocorre na concessão de serviço público (Laubadère, Delvolvé e Moderne, ob. cit., p. 426).

Os contratos de programa e os contratos de empresa enquadram-se, de forma semelhante, como tipos de acordo de natureza complexa, por envolverem vários tipos de cláusulas, algumas imperativas e de aplicação imediata (como, por exemplo, quando o Estado se obriga a cobrir certos encargos ou a empresa se obriga a realizar certos investimentos); outras imperativas, mas não de aplicação imediata, porque dependem de providências posteriores e, às vezes, produzem efeitos em relação a terceiros; outras cláusulas meramente indicativas ou programáticas.

Daí a afirmação de que se trata de "contratos discutíveis"; na realidade, o que é discutível é a sua natureza efetivamente contratual.

Mais discutível ainda fica o caráter "contratual" quando se trata de acordos firmados com os "centros de responsabilidade", que são órgãos integrantes do aparelhamento do próprio Estado, portanto, sem personalidade jurídica própria.



3. DIREITO BRASILEIRO

3.1. Dificuldades do contrato de gestão com entidades

da Administração Indireta

No direito brasileiro, adotou-se o modelo francês, mas se optou pela denominação de "contratos de gestão", já consagrada no direito positivo e em alguns trabalhos doutrinários.

Em relação às empresas estatais, houve por parte do Governo o mesmo objetivo que inspirou o sistema francês, de contratualizar o controle que a Administração exerce sobre as entidades da Administração Indireta. A vantagem existe para as duas partes: para o Estado, porque submete as empresas ao cumprimento dos programas ou objetivos governamentais; para as empresas, porque ganham maior autonomia de gestão, sujeitando-se a um controle de resultados, ao invés do controle puramente formal a que se sujeitam normalmente.

Aliás, o controle de resultados é essencial nesse tipo de contrato, porque é a única maneira de verificar-se a consecução dos objetivos governamentais.

Não há dúvida, no entanto, de que no direito brasileiro as dificuldades de utilização desse tipo de contrato são imensas, em face do direito positivo atualmente em vigor em relação às entidades da Administração Indireta. Especialmente a partir da Constituição de 1988, verificou-se a tendência de publicizar o regime jurídico das pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Indireta. Praticamente foi igualado o seu regime e o da Administração Direta, em termos de contabilidade, orçamento, controle, licitação, processo de seleção de pessoal etc.

O Instituto de Estudos Avançados da USP e o Instituto dos Advogados de São Paulo, em trabalhos de que participamos, haviam sugerido que, em eventual reforma da Constituição, se estabelecesse, para as entidades da Administração Indireta, regime jurídico específico, mais em consonância com sua personalidade de direito privado.

Na ausência desse tipo de reforma, fica difícil conseguir resultados com o contrato de gestão, porque, em contrapartida pelos compromissos impostos às empresas estatais, não pode o Governo oferecer a almejada autonomia. Aquilo que é possível no direito administrativo francês (muito menos legislado do que o nosso) fica difícil, senão impossível, no direito brasileiro. Dificilmente se pode celebrar contrato de gestão, sem esbarrar em normas legais expressas. É exatamente o que vem ocorrendo na esfera federal.

Os primeiros contratos de gestão com empresas estatais foram celebrados, na esfera federal, com a Companhia Vale do Rio Doce - CVRD e a Petróleo Brasileiro S.A - PETROBRÁS (ambos com base no Decreto n. 137, de 27.5.91, que instituiu o Programa de Gestão das Empresas Estatais). Também foi celebrado contrato de gestão com o Serviço Social Autônomo Associação das Pioneiras Sociais, antiga Fundação das Pioneiras Sociais (fundação governamental); essa transformação parece ter tido por objetivo aproximar a entidade dos antigos serviços sociais autônomos (SESI, SESC, SENAI etc.), considerados como entidades paraestatais, porém não integrantes da Administração Indireta. Por sua vez, aquela mesma entidade parece ter inspirado a instituição das organizações sociais, analisadas no item subsequente.

Pelo artigo 8º do Decreto n. 137, as empresas estatais poderão submeter ao Comitê de Controle das Empresas Estatais - CCE "propostas de contratos individuais de gestão, no âmbito do Programa de Gestão das Empresas Estatais, objetivando o aumento de sua eficiência e competitividade". Em consonância com o § 1º do mesmo dispositivo, "os contratos de gestão, estipulando os compromissos reciprocamente assumidos entre a União e a empresa, conterão cláusulas especificando: I - objetivos; II - metas; III - indicadores de produtividade; IV - prazos para a consecução das metas estabelecidas e para a vigência do contrato; V - critérios de avaliação de desempenho; VI - condições para a revisão, renovação, suspensão e rescisão; e VII - penalidades aos administradores que descumprirem as resoluções do CCE ou as cláusulas contratuais."

O § 3º do referido dispositivo determina que "as empresas estatais que vierem a celebrar contratos de gestão com a União ficarão isentas do sistema de autorização prévia previsto no artigo 3º, II, assim como do disposto no artigo 3º do Decreto n. 17, de 1º.2.91".

O artigo 3º, II, referido no dispositivo, exige que as empresas estatais submetam à prévia aprovação do CCE suas propostas relativas a preços e tarifas públicas, admissão de pessoal, despesa de pessoal, inclusive contratado a título de Serviços de Terceiros, elaboração, execução e revisão orçamentárias, contratação de operações de crédito ou de arrendamento mercantil, inclusive refinanciamento; e demais assuntos que afetem a política econômica.

Vale dizer que as empresas que celebrassem o contrato de gestão ficariam com maior autonomia para decidir sobre todos os aspectos referidos nesse dispositivo.

Pelo Decreto s/n., de 10.6.92, foi a autorizada a celebração do contrato com a Companhia Vale do Rio Doce. Nos termos do artigo 2º, ficou estabelecido que, ressalvada expressa e especial disposição em contrário, a CVRD, com a celebração do contrato, ficaria sujeita, no âmbito do Poder Executivo, exclusivamente às normas de controle interno e supervisão ministerial estabelecidas no Decreto e no referido contrato.

O dispositivo é de legalidade bastante duvidosa, porque a matéria de controle das entidades da Administração Indireta é estabelecida em lei, que não pode ser derrogada por decreto do Poder Executivo. Na esfera federal, a matéria de controle está disciplinada pelo Decreto-lei n. 200, de 25.2.67, que cuida do tema sob o título de "supervisão ministerial" (arts. 19 a 29) e pela Medida Provisória n. 1.390, de 11.4.96 (sucessivamente reeditada). Se o legislador fixou as hipóteses de controle cabíveis, não cabe ao Executivo abrir mão desse controle.

Com a Petrobrás, foi também autorizada a celebração de contrato de gestão pelo Decreto n. 1.040, de 27.1.94, cujo artigo 5º também dispensou a empresa do controle prévio quanto a vários tipos de atos. Evidentemente, vale a mesma observação feita com relação à CVRD: as dispensas de controle prévio não podem ser feitas com infringência a normas legais que disciplinem a matéria.

À vista das dificuldades apontadas, é indispensável, para assegurar a almejada autonomia, mudar o direito positivo. Não se pode, por meio de contrato de gestão, descumprir normas legais e preceitos da própria Constituição.

Não é possível concordar com a Escola Nacional de Administração Pública quando, depois de apontar as dificuldades de um controle governamental bastante rígido estabelecido no direito positivo brasileiro, afirma que "quem convive e conhece intimamente a burocracia pública não se surpreende ao ver inúmeras transgressões "positivas" das normas (grifamos), que são empregadas como único recurso para fazer funcionar os serviços públicos em determinados momentos ou situações. O sentimento de desconforto, ocasionado por esse fato, intensifica o pensamento de que apenas um maior grau de autonomia gerencial pode trazer às organizações públicas mais funcionalidade e melhor desempenho" (ob. cit., p. 87).

Embora reconhecendo a rigidez do direito positivo brasileiro, é muito difícil aceitar-se que uma transgressão, por mais que seja bem intencionada, possa ser positiva. Uma vez que se aceite a transgressão como válida, difícil será estabelecer limites que, ultrapassados, caracterizem transgressão "negativa" e, portanto, inaceitável. Além do mais, caberia indagar a quem caberia definir esses limites.

É evidente que o contrato de gestão pode ser útil para o Estado e para suas empresas. Mas, há que ser respeitado o direito positivo. A autonomia a ser concedida às entidades com as quais o Estado celebra esse tipo de contrato não pode ultrapassar os limites definidos em lei.

O Tribunal de Contas da União, analisando o contrato de gestão celebrado com a Cia. Vale do Rio Doce (RDA 201/311-319), embora entendendo que a experiência é válida e positiva sob muitos aspectos, considerou que "as Empresas Públicas e as Sociedades de Economia Mista, mesmo aquelas que visem a objetivos estritamente econômicos, em condição de competitividade com a iniciativa privada, ainda que sob o regime de Contrato de Gestão, estão sujeitas a todas as exigências constitucionais e legais, da mesma forma que as demais entidades integrantes da Administração Pública Federal, tais como: obrigatoriedade de concurso público para a seleção e admissão de pessoal (art. 37, II); observância do limite máximo de remuneração de dirigentes e servidores (art. 37, XI); cumprimento das normas para licitação e contratos pertinentes a obras, serviços, compras, alienações e locações (art. 37, XXI, e Lein. 8.666/93).

No entanto, precisamente por considerar positiva a experiência, resolveu encaminhar ao Presidente da República, a título de colaboração, a proposta de realização de estudos "sobre a conveniência e oportunidade de encaminhar, ao Congresso Nacional, Projeto de Lei Ordinária ou Emenda Constitucional que venha a estabelecer, expressamente, exceções à observância de preceitos constitucionais e legais, ou autorizar a adoção, pelas Entidades sob o regime de Contrato de Gestão, de métodos simplificados de gestão e das despesas deles decorrentes..."



3.2. Os contratos de gestão e as organizações sociais

Fora do âmbito da Administração Indireta, os contratos de gestão vêm sendo mencionados pelo Governo Federal como modalidade de ajuste a ser celebrado com todas as instituições governamentais de transformação em Organizações Sociais, excetuando-se as abrangidas pelo Decreto

n. 137/91, que instituiu o Programa de Gestão das Empresas Estatais. Conforme mencionado no item anterior, o mesmo tipo de contrato já foi celebrado com o Serviço Social Autônomo Associação das Pioneiras Sociais.

As organizações sociais constituem novo tipo de entidade, que o Governo chama de "pública não estatal". Ela é pública, não porque pertença ao Estado, mas porque exerce serviço público e administra o patrimônio público, sob o controle por parte do poder público. Só que esse controle se flexibiliza, deixando de ser essencialmente formal, como ocorre hoje em relação às entidades da Administração Indireta, e passa a ser um controle de resultados. Para esse, a relação que se estabelece entre o ente político titular do serviço e a entidade pública não estatal (Organização Social) passa a ser em grande parte contratual, porque se dá por meio dos contratos de gestão.

E a entidade é dita "não estatal" porque a idéia é que ela não pertença ao Estado, nem se enquadre entre as entidades da Administração Indireta.

É curioso observar que o Governo Federal vem anunciando a instituição de organizações sociais desde que lançado o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, elaborado pelo MARE - Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado e aprovado pela Câmara da Reforma do Estado em reunião de 21.9.95. No entanto, até agora não as instituiu, ao contrário de alguns Estados que, baseando-se na idéia do Governo Federal, amplamente divulgada, já disciplinaram a matéria por meio de lei e já instituíram algumas organizações sociais, que constituem realidade no direito brasileiro.

A respeito do assunto das organizações sociais, consta do Plano Diretor o seguinte:

"O Projeto das Organizações Sociais tem como objetivo permitir a descentralização de atividades no setor de prestação de serviços não-exclusivos, nos quais não existe o exercício do poder do Estado, a partir do pressuposto que esses serviços serão mais eficientemente realizados se, mantendo o financiamento do Estado, forem realizados pelo setor público não-estatal.

Entende-se por "organizações sociais" as entidades de direito privado que, por iniciativa do Poder executivo, obtêm autorização legislativa para celebrar contrato de gestão com esse poder, e assim ter direito à dotação orçamentária.

As organizações sociais terão autonomia financeira e administrativa, respeitadas as condições descritas em lei específica como, por exemplo, a forma de composição de seus conselhos de administração, prevenindo-se, desse modo, a privatização ou a feudalização dessas entidades. Elas receberão recursos orçamentários, podendo obter outros ingressos através da prestação de serviços, doações, legados, financiamentos etc.

As entidades que obtenham a qualidade de organizações sociais gozarão de maior autonomia administrativa e, em compensação, seus dirigentes terão maior responsabilidade pelo seu destino. Por outro lado, busca-se através das organizações sociais uma maior participação social, na medida em que elas são objeto de um controle direto da sociedade através de seus conselhos de administração recrutado no nível da comunidade à qual a organização serve. Adicionalmente, se busca uma maior parceria com a sociedade, que deverá financiar uma parte menor mais significativa dos custos dos serviços prestados.

A transformação dos serviços não-exclusivos estatais em organizações sociais se dará de forma voluntária, a partir da iniciativa dos respectivos ministros, através de um Programa Nacional de Publicização. Terão prioridade os hospitais, as universidades e escolas técnicas, os centros de pesquisa, as bibliotecas e os museus. A operacionalização do Programa será feita por um Conselho Nacional de Publicização, de caráter interministerial".

Ao referir-se a essas entidades como "públicas não estatais", fica muito clara a intenção de tentar excluí-las da abrangência da Administração Indireta e, em conseqüência, excluí-las também da incidência das normas e princípios constitucionais que a ela se aplicam.

É um caminho bastante tortuoso para escapar ao regime jurídico-constitucional imposto à Administração Pública. Talvez fosse mais simples alterar-se esse regime para permitir maior eficácia às entidades que compõem a Administração Indireta.

Bastaria alterar as normas de controle atualmente vigentes e celebrar contratos de gestão com as entidades que hoje integram a Administração Indireta.

Quanto aos contratos de gestão, a intenção é a mesma que já se concretizou no direito francês e em outros países que seguiram o mesmo modelo. Só que, ali, manteve-se a natureza das empresas estatais como entidades da Administração descentralizada. E aqui pretende-se excluí-las desse conceito, talvez sem alcançar inteiramente esse objetivo. Isto porque, se a instituição das organizações sociais é iniciativa do próprio Estado; se elas são instituídas especialmente para exercerem serviço público delegado pelo Estado; se vão administrar patrimônio público; se vão receber dotações orçamentárias; se vão ficar sob controle do Estado; na realidade elas dificilmente vão escapar das normas constitucionais impostas à Administração Indireta. Até porque a Constituição, quase que prevendo uma situação como essa, a cada vez que se referiu à Administração Pública, direta ou indireta, fez referência a "outras entidades" sob controle do Estado ou a "fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público" ou expressões semelhantes; vejam-se, por exemplo, os artigos 22, inciso XXVII, 70, II e III, 165, § 5º, I e III, 169, parágrafo único.

Segundo tudo indica, o que serviu de inspiração para o projeto das organizações sociais foram os chamados Serviços Sociais Autônomos (SESI, SESC, SENAI e outros) e, mais proximamente, o Serviço Social Autônomo "Associação das Pioneiras Sociais".

Com relação a essa categoria de entidade — serviço social autônomo — escreveu Hely Lopes Meirelles (Direito administrativo brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 338) que "são todos aqueles instituídos por lei, com personalidade de Direito Privado, para ministrar assistência ou ensino a certas categorias sociais ou grupos profissionais, sem fins lucrativos, sendo mantidos por dotações orçamentárias ou por contribuições parafiscais. São entes paraestatais, de cooperação com o Poder Público, com administração e patrimônio próprios, revestindo a forma de instituições particulares convencionais (fundações, sociedades civis ou associações) ou peculiares ao desempenho de suas incumbências estatutárias." Como exemplo, ele cita o SENAI, SENAC, SESC, SESI, "com estrutura e organização especiais, genuinamente brasileiras".

Acrescenta o autor que tais entidades, "embora oficializadas pelo Estado, não integram a Administração direta nem a indireta, mas trabalham ao lado do Estado, sob seu amparo, cooperando nos setores, atividades e serviços que lhes são atribuídos, por considerados de interesse específico de determinados beneficiários. Recebem, por isso, oficialização do Poder Público e autorização legal para arrecadarem e utilizarem na sua manutenção contribuições parafiscais, quando não são subsidiadas diretamente por recursos orçamentários da entidade que as criou."

Não há dúvida de que tais entidades foram criadas com personalidade jurídica de direito privado, o que afasta a natureza autárquica.

Conforme por nós demonstrado na segunda edição do livro Parcerias na Administração Pública (São Paulo: Atlas, 1997), a dificuldade na fixação da sua natureza jurídica e do seu enquadramento ou não dentre as entidades da Administração indireta decorre do fato de que foram criadas na vigência da Constituição de 1946, quando não havia, no direito brasileiro, normas específicas sobre a administração indireta, nem na Constituição nem na legislação ordinária.

Lendo-se os consideranda dos Decretos-Leis ns. 9.403, de 25.6.46, e 9.853, de 13.9.46, que atribuíram, respectivamente, à Confederação Nacional da Indústria e à Confederação Nacional do Comércio o encargo de criarem, organizarem e dirigirem o Serviço Social da Indústria - SESI e o Serviço Social do Comércio - SESC, verifica-se que o Governo fe-deral agiu muito mais na função de fomento à iniciativa privada de interesse público, do que na função de prestação de serviço público. Vejam-se especialmente os seguintes consideranda:

"Considerando as dificuldades que o encargo de após-guerra tem criado na vida social e econômica do país, com intensas repercussões nas condições de vida da coletividade, em especial das classes menos favorecidas;

"Considerando que é dever do Estado concorrer não só diretamente para a solução desses problemas, como favorecer e estimular a cooperação das classes em iniciativas tendentes a promover o bem- estar dos trabalhadores e de suas famílias."

Isto significa que a participação do Estado, no ato de criação, se deu para incentivar a iniciativa privada, por meio de subvenção garantida por meio da instituição compulsória de contribuições parafiscais destinadas especificamente a essa finalidade. Não se trata de atividade que incumbisse ao Estado, como serviço público, e que ele transferisse para outra pessoa jurídica, por meio do instrumento da descentralização. Trata-se, isto sim, de atividade privada de interesse público que o Estado resolveu incentivar e subvencionar.

Talvez por isso essas entidades não sejam consideradas integrantes da Administração Indireta. No entanto, pelo fato de administrarem verbas decorrentes de contribuições parafiscais e gozarem de uma série de privilégios próprios dos entes públicos, estão sujeitas a normas semelhantes às da Administração Pública, sob vários aspectos, em especial no que diz respeito à licitação, processo seletivo para seleção de pessoal, prestação de contas, improbidade administrativa e para fins criminais.

Note-se que as leis instituidoras não criaram diretamente as entidades, nem autorizaram o Poder Executivo a fazê-lo, como ocorre em relação às pessoas jurídicas de direito privado instituídas pelo Poder Público; as leis atribuíram às Confederações Nacionais da Indústria e do Comércio o encargo de fazê-lo. O Poder Público, por meio dos referidos decretos-leis, garantiu a sua manutenção por meio de contribuições parafiscais recolhidas pelos empregadores aos chamados Serviços Sociais.

Talvez seja em relação a essas entidades que melhor se aplique a expressão "entidade paraestatal", que funciona paralelamente ao Estado sem nele se integrar; realiza uma atividade de interesse público, sem se confundir com o serviço público próprio do Estado; submete-se a um regime jurídico de direito privado, mas, ao mesmo tempo, goza de privilégios e sofre restrições próprias da Administração Pública.

A característica principal desse tipo de prestação de atividade de interesse público é justamente a colaboração com o poder público. É uma atividade paralela ao Estado, ou seja, é uma atividade paraestatal. Seria aquilo que André de Laubadère (apud Françoise Roque, in Revue du Droit Public, 1990, n. 6, p. 1.785) considera como atividade que atua na vizinhança com o serviço público. Ela não é serviço público e não é atividade inteiramente privada. Ela está numa zona intermediária.

Comparando-se essas entidades com as organizações sociais, verifica-se que, naquelas, o Estado não abriu mão da execução de serviço público que a lei lhe atribuiu, nem extinguiu qualquer de seus órgãos ou entidades. O Estado manteve intactas as suas atividades e entidades e apenas fomentou, ajudou, subsidiou a iniciativa privada na instituição de entidades que iriam exercer serviços de interesse público (não serviço público), instituindo, para esse fim, contribuição parafiscal para ajudá-las na sua atividade. No caso das organizações sociais, o Estado está delegando uma atividade sua, deixando de exercê-la; está extinguindo uma entidade pública para, em seu lugar, deixar nascer uma entidade privada.

No caso dos serviços sociais autônomos, surge uma entidade paraestatal, que vai funcionar paralelamente ao Estado; no caso das organizações sociais, há uma substituição de uma entidade pública, que vai desaparecer, por uma entidade privada (dita "pública não estatal").

Na realidade, o que se está fazendo com a instituição de organizações sociais é criar uma nova forma de delegação de serviço público, reservada para atividades sociais não exclusivas do Estado, como é o caso do ensino universitário, do serviço hospitalar, da pesquisa e outras. E aqui também há uma diferença grande em relação aos serviços sociais autônomos. Estes também exercem atividades sociais não exclusivas do Estado, porém em colaboração com o poder público e sem perder, o serviço, a natureza de atividade privada de interesse público.

Para bem entender o que se acaba de afirmar, pode-se tomar como exemplo a Constituição atual, na parte relativa à saúde. No artigo 196, está prevista a saúde como "dever do Estado", ou seja, a saúde como serviço público próprio do Estado. No artigo 199 está dito que "a assistência à saúde é livre à iniciativa privada", ou seja, a saúde aí não é prevista como serviço público (já que não atribuída ao Estado), mas como atividade livremente aberta à iniciativa privada.

No primeiro caso, a saúde, como serviço público, é atribuição do Estado e, se exercido por particular, esse exercício se dará por delegação do poder público e sob a observância das normas que regem a saúde pública na Constituição, em especial as da gratuidade, da universidade e da submissão obrigatória ao sistema único de saúde.

No segundo caso, a saúde, como atividade aberta à iniciativa privada, não é objeto de delegação mas de mera autorização do Poder Público, ficando sob sua fiscalização, dentro do poder de polícia do Estado.

O mesmo se diga a respeito da educação, que é prevista como "dever do Estado" (arts. 205 e 208 da Constituição) e, paralelamente, como atividade "livre à iniciativa privada" (art. 209).

Voltando-se à comparação entre os dois tipos de entidade, pode-se afirmar que as organizações sociais, tal como previstas na proposta constante do Plano Diretor e em algumas leis estaduais, exercem serviço público delegado pelo Estado, devendo submeter-se a todas as normas constitucionais pertinentes ao mesmo. Já os serviços sociais autônomos exercem atividade privada meramente autorizada pelo poder público, ainda que por ele subsidiadas por meio de contribuições parafiscais.



4. CONCLUSÕES

Os contratos de gestão podem ser importante instrumento de ação do poder público, quer sob a forma de contratualização da tutela sobre as entidades da Administração Indireta, quer sob a forma de parceria com a iniciativa privada. No primeiro caso, o contrato fixa programa a ser cumprido pela entidade em troca do reconhecimento de maior autonomia. No segundo caso, o contrato fixa igualmente programa a ser cumprido pela entidade que atua como paraestatal, em colaboração com o Poder Público, recebendo ajuda financeira para esse fim.

Se, no caso da Administração Indireta, o contrato de gestão tem como contrapartida a flexibilização de regime jurídico administrativo, no caso da entidade privada o contrato serve ao objetivo contrário, pois, ao invés de permitir a submissão integral ao regime jurídico privado, exige-se da entidade a obediência a determinadas normas e princípios próprios do regime jurídico publicístico, colocando-as na categoria de entidades paraestatais.

A celebração de contratos de gestão com entidades da Administração Indireta é, em tese, possível, mas encontra inúmeros óbices no direito positivo brasileiro, já que a possibilidade de flexibilizar o funcionamento da entidade, pela outorga de maior autonomia, é muito difícil, senão impossível, a menos que se altere a Constituição.

A celebração de contratos de gestão com entidades privadas (ditas paraestatais) é também possível, desde que sejam obedecidas as normas constitucionais e legais pertinentes, especialmente as que cuidam de repasse de verbas públicas e controle.

_________

* Procuradora do Estado de São Paulo aposentada e Professora Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da USP.

Nenhum comentário:

Postar um comentário