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sexta-feira, 13 de março de 2020

A NOVA IN Nº 10 DA SEGES E A PARTICIPAÇÃO DE EMPRESAS ESTRANGEIRAS Daniel de Andrade Oliveira Barral Procurador Federal da AGU, Fundador e Colaborador do Portal L&C em Direito Público pela Universidade Nova de Lisboa

O tema da participação de empresas estrangeiras nas licitações federais ganhou um novo desdobramento a partir da recente alteração da Instrução normativa nº 3, de 16 de Dezembro de 2011 pela Instrução Normativa nº 10, de 10 de Fevereiro de 2020, abaixo reproduzida no ponto pertinente a esta análise:

 

Art. 1º A Instrução Normativa n° 3, de 26 de abril de 2018, passa a vigorar com as seguintes alterações:

"Art. 9º O credenciamento é o nível básico do registro cadastral no Sicaf que permite a participação dos interessados na modalidade licitatória Pregão, em sua forma eletrônica, bem como na Dispensa Eletrônica e no Regime Diferenciado de Contratações eletrônico - RDC................................................................................................" (NR)

"Art. 20-A. As empresas estrangeiras que não funcionem no País, para participarem dos procedimentos de licitação, dispensa, inexigibilidade e nos contratos administrativos, poderão se cadastrar no Sicaf, mediante código identificador específico fornecido pelo sistema, observadas as seguintes condições:

I - os documentos exigidos para os níveis cadastrais de que trata o art. 6° poderão ser atendidos mediante documentos equivalentes, inicialmente apresentados com tradução livre; e

II - para fins de assinatura do contrato ou da ata de registro de preços:

a) os documentos de que trata o inciso I deverão ser traduzidos por tradutor juramentado no País e apostilados nos termos do disposto no Decreto nº 8.660, de 29 de janeiro de 2016, ou de outro que venha a substituí-lo, ou consularizados pelos respectivos consulados ou embaixadas; e

b) deverão ter representante legal no Brasil com poderes expressos para receber citação e responder administrativa ou judicialmente.

§1° No caso de inexistência de documentos equivalentes para os níveis cadastrais de que trata o inciso I, o responsável deverá declarar a situação em campo próprio no Sicaf.

§2° A solicitação do código de acesso de que trata o caput deverá se dar nos termos do disposto no Manual do Sicaf, disponível no Portal de Compras do Governo Federal." (NR)

 

Em síntese o normativo passará a permitir, uma vez cumprida a vacatio legis, que empresas estrangeiras possam concorrer nos procedimentos de licitação, dispensa e inexigibilidade mediante a apresentação de documentos desacompanhados de tradução oficial ou juramentada.

 

A ideia que anima a recente alteração é postergar o atendimento destas obrigações para o momento imediatamente anterior à assinatura do contrato, apenas na hipótese de a empresa estrangeira sagrar-se vencedora no procedimento licitatório, quando então seriam exigidas a apresentação da tradução juramentada e a declinação do representante legal no Brasil com poderes expressos para receber citação e responder administrativa ou judicialmente.

 

Tratam-se, portanto, de medidas voltadas à eliminação de duas barreiras à entrada destas empresas nos certames licitatórios nacionais, dispensando-as dos custos associados ao atendimento de uma exigência burocrática cartorial e da constituição de acordo com as leis brasileiras.

 

De certo modo, esta norma guarda íntima correlação com a interpretação vertida na súmula 272 do Tribunal de Contas da União que veda a imposição de exigências de habilitação e de quesitos de pontuação técnica para cujo atendimento os licitantes tenham de incorrer em custos que não sejam necessários anteriormente à celebração do contrato.

 

A questão que merece enfrentamento neste comentário é avaliar a compatibilidade da IN SEGES nº 10 de 2020 com a Lei Geral de Licitações, ou seja, se estas exigências são indispensáveis à participação no procedimento licitatório ou se poderiam mesmo ser postergadas para o momento da celebração do contrato.

 

Apresentada a questão com estes contornos, podemos divisar dois elementos essenciais a serem enfrentados. Um primeiro envolvendo a tradução juramentada e outro envolvendo a possibilidade de empresas estrangeiras participarem de licitações nacionais sem o cumprimento integral da legislação nacional na fase competitiva.

Sobre a relativização da necessidade de tradução juramentada

 

Desde logo é importante registrar, com suporte na lição de Aline Cavalcante dos Reis Silva[1], que um documento produzido no exterior deve, em regra, observar duas exigências; ser consularizado ou apresentar a apostila de que trata o Decreto nº 8.660 de 29 de janeiro de 2016 e traduzido por tradutor juramentado.

 

Sem pretender esmiuçar o processo da legalização de documento estrangeiro, que de outro modo encontra-se detalhado no Manual de Serviço Consular e Jurídico do Ministério das Relações Exteriores, a consularização consiste, basicamente, em serviço cartorial de reconhecimento da assinatura do documento produzido no exterior[2] [3].

 

Já a tradução juramentada consiste na tradução realizada pelo tradutor oficial ou público, ofício instituído pelo Decreto nº 13.609, de 21 de outubro de 1943.

 

Se é certo que o vetusto Decreto confere às traduções oficiais caráter exclusivo para a produção de efeitos em processos administrativos e oficiais[4], de igual modo faz-se necessário reconhecer que as práticas atuais já excepcionam esta exigência, presentes alguns requisitos.

 

Com efeito, os estudiosos do tema como Rafael Wallbach Schwind[5], Rodrigo Garcia da Fonseca[6] e Thiago Marrara e Carolina Silva Campos[7] são concordes em reconhecer a possibilidade de relativização desta regra em favor do incremento da competitividade.

 

A opinião destes autores é amparada por relatos de escassez de profissionais habilitados para realizar as traduções oficiais de línguas menos comuns[8] ou de um sentimento geral de inadequação desta formalidade com os tempos atuais de acesso mais facilitado à informação e ao conhecimento.

Estas mudanças foram captadas pelos Tribunais, em especial pelo Superior Tribunal de Justiça[9], cuja jurisprudência aponta tendência de superação desta exigência quando não houver prejuízo à instrução do processo, ou seja, quando a ausência da tradução não impedir a compreensão do conteúdo do documento estrangeiro, forte no princípio da instrumentalidade do processo[10].

 

Assim, a IN SEGES nº 10, de 2020 foi editada em uma cena preexistente de mitigação da exigência da tradução juramenta, sempre que esta superação se mostrar adequada ao atendimento do interesse público[11] e não importar em violação à segurança jurídica necessária ao respeito aos direitos dos administrados[12].

 

Ademais, sequer podemos atribuir à IN SEGES nº 10, de 2020 o papel de arauto da mudança ora comentada, pois antes deste normativo foram editados o Decreto nº 9.283, de 7 de fevereiro de 2018 regulamentador da legislação dedicada ao incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e o Decreto nº 10.024, de 20 de setembro de 2019, regulamentador do pregão eletrônico.

 

O primeiro permitiu a compatibilização das exigências contidas na Lei nº 8.666, de 1993 à realidade das empresas estrangeiras, que muitas vezes não dispõem de documentos equivalentes aos brasileiros no país de origem. Ademais, permite a dispensa da tradução juramentada inclusive para a fase de execução do contrato de produtos para pesquisa e desenvolvimento, conforme se constata da leitura do artigo reproduzido abaixo:

 

Decreto nº 9.283, de 7 de fevereiro de 2018

(...)

Art. 67. A documentação de que tratam o art. 28 ao art. 31 da Lei nº 8.666, de 1993 , poderá ser dispensada, no todo ou em parte, para a contratação de produto para pesquisa e desenvolvimento, desde que para pronta entrega ou até o valor previsto na alínea “a” do inciso II do caput do art. 23 da referida Lei, observadas as disposições deste artigo.

§ 1º Caberá ao contratante definir os documentos de habilitação que poderão ser dispensados em razão das características do objeto da contratação e observadas as seguintes disposições:

I - na hipótese de fornecedores estrangeiros que não funcionem no País, a prova de regularidade fiscal, ou outro documento equivalente, do domicílio ou da sede do fornecedor é inexigível;

II - na hipótese de fornecedores estrangeiros que não funcionem no País, a prova de regularidade fiscal para com a Fazenda distrital, estadual e municipal do domicílio ou da sede do fornecedor poderá ser dispensada;

III - a regularidade fiscal e trabalhista do fornecedor estrangeiro perante as autoridades de seu País é inexigível; e

IV- na hipótese de fornecedores estrangeiros que não funcionem no País, o contratante poderá dispensar a autenticação de documentos pelos consulados e a tradução juramentada, desde que seja fornecida tradução para o vernáculo.

§ 2º Na hipótese de fornecedores estrangeiros que não funcionem no País, o contratante poderá dispensar a representação legal no País de que trata o § 4º do art. 32 da Lei nº 8.666, de 1993 , situação em que caberá ao contratante adotar cautelas para eventual inadimplemento contratual ou defeito do produto, incluídas a garantia contratual, a previsão de devolução total ou parcial do valor, a emissão de título de crédito pelo contratado ou outras cautelas usualmente adotadas pelo setor privado. (grifos nossos)

 

O legislador limitou as hipóteses de simplificação às situações previstas no art. 32, § 7o da Lei n. 8.666, de 1993, àquelas já existentes no § 1º do mesmo artigo, ou seja, bens disponíveis para pronta entrega ou que apresentem valor não superior ao previsto na alínea “a” do inciso II do caput do art. 23 da mesma LGL.

 

Art. 32. Os documentos necessários à habilitação poderão ser apresentados em original, por qualquer processo de cópia autenticada por cartório competente ou por servidor da administração ou publicação em órgão da imprensa oficial.

§ 1o  A documentação de que tratam os arts. 28 a 31 desta Lei poderá ser dispensada, no todo ou em parte, nos casos de convite, concurso, fornecimento de bens para pronta entrega e leilão.

(...)

§ 7o A documentação de que tratam os arts. 28 a 31 e este artigo poderá ser dispensada, nos termos de regulamento, no todo ou em parte, para a contratação de produto para pesquisa e desenvolvimento, desde que para pronta entrega ou até o valor previsto na alínea “a” do inciso II do caput do art. 23.  

 

Ocorre que o recurso ao artigo em comento é indevido por duas razões, em nossa opinião. A uma porque, como ensina Sidney Bittencourt[13], a tradução juramentada não constitui documento autônomo, nem integra o rol habilitatório da empresa estrangeira, mas consiste, apenas, em exigência complementar de natureza formal. Neste sentido Ivo Ferreira de Oliveira:[14]

 

À primeira vista, e diante de norma expressa, que exige a autenticação consular e a tradução por tradutor juramentado, a resposta seria a inabilitação de licitante, toda vez que documentos apresentados em língua estrangeira não atendessem às prescrições legais – norma cuja ratio é o princípio da soberania nacional. Não pensamos assim. E tampouco estamos sós, neste particular. Paulo Roberto Trompczynski, ex-consultor jurídico do Tribunal de Contas do Estado do Paraná [...] enfrentou, recentemente, a seguinte questão: documentos a serem apresentados em outros idiomas, que não o português ou o espanhol (exigidos pelo Edital/Caderno de Bases e Condições) foram entregues desacompanhados das respectivas versões, tendo, por isso, a comissão inabilitado a proponente – donde o recurso. [...] a tradução é simples complemento, que confere eficácia ao documento, sendo imprestável para substituí-lo, correspondendo, portanto, à mera formalidade legal que lhe confere o efeito por ele visado [...]. E, sendo assim, constatada a necessidade da tradução como providência indispensável para a eficácia dos documentos apresentados em inglês, a Comissão, deveria, no caso em tela, ter diligenciado, por analogia à faculdade constante do próprio ato convocatório do certame, que possibilitava aos licitantes substituírem, por outra do mesmo original, cópia ilegível ou borrada, solicitando a entrega da versão no prazo que viesse a estabelecer. Não se diga que a diligência afigurar-se-ia via imprópria para tanto, informação complementa nos precisos termos com que foi prevista, não poderia oportunizar a apresentação de documentos pelo licitante, pena de ilegalidade. Isso porque, embora a tradução seja instrumentada em certidão fornecida pelo tradutor oficial ela, em si mesma, não é um documento, mas complemento de eficácia daquele oportunamente oferecido pela interessada em idioma estrangeiro, que não altera, acrescenta ou inova seu conteúdo, mas apenas lhe confere validade. Na esteira do entendimento de Trompczynski, cremos que a não-apresentação por parte da proponente de atestados traduzidos, longe está de torná-los nulos, porque, na lição abalizada do Professor Manuel A. Domingues de Andrade, a nulidade pressupõe uma falta ou irregularidade quanto aos seus elementos internos – e, nos atestados, não havia qualquer vício de formação. O fato de não estarem vertidos para o português, caracteriza apenas ineficácia em sentido estrito, isto é, falta ou irregularidade de outra natureza. Mais: em que pese estarem desacompanhados da tradução para o vernáculo, os atestados produziram efeitos inter partes, embora não perante terceiros, tipificando, ainda na linguagem precisa de Domingues de Andrade, ineficácia relativa. E, em casos de ineficácia relativa, para recorrermos ao simbolismo de rara beleza de que serviu o notável mestre lusitano, se está diante de “negócios bifrontes, negócios com cabeça de Jano”: quanto a uma das partes produzem efeitos; quanto à outra não. Por conseguinte, não sendo nulos os atestados, mas simplesmente ineficazes perante terceiros, nada impediria que fossem convalidados pela posterior apresentação do texto vertido, mercê da realização de diligência – diligência de versão –, assinando-se prazo razoável para que o interessado o fizesse. (grifos nossos)

A duas porque o art. 32, §§ 1º e 7º da LGL não veiculam norma habilitante de direito, mas apenas densifica regra do art. 37, XXI[15] da Constituição Federal de 1988 que impõe a modulação das exigências de qualificação técnica e econômica ao mínimo essencial para a garantir a execução do objeto.

 

A verdade é que, bem ponderadas as disposições deste artigo, o administrador público não pode fazer tudo que está ali abstratamente autorizado nem está limitado pelo que ali está contido.

 

Ora, se por um lado a doutrina já bem apontou que não é possível dispensar os documentos relativos à habilitação jurídica ou prova de regularidade com a seguridade social, cuja exigência encontra assento constitucional[16] [17], por outro não podemos restringir a aplicação do comando constitucional em situações que o próprio legislador constituinte assim não estabeleceu, pois não limitou a modulação dos requisitos de habilitação apenas às hipóteses elencadas no artigo 32 §7º da LGL.

 

Logo, se há alguma valia neste artigo é o de ter, ope legis, indicado rol de hipóteses subsumidas ao comando constitucional, sem que a leitura a contrario sensu possa ser invocada como elemento limitador ao poder-dever do administrador público de enquadrar outras hipóteses à previsão constitucional.

 

Com isso queremos dizer que, por não constituir um documento encartado no rol habilitatório veiculado nos artigos 28 a 31 da Lei nº 8.666, de 1993, a dispensa da tradução juramentada não pode ser fundamentada e, para todos os efeitos do que ora defendemos, restrita às hipóteses de bens aptos à pronta entrega ou que apresentem valores inferiores à modalidade convite.

 

Ao revés, pensamos que o fundamento da dispensa desta formalidade deve encontrar suporte na verificação da presença do binômio necessidade-utilidade da imposição deste requisito para o atendimento das finalidades do processo administrativo de contratação, tendo presente a necessidade de afastamento das formalidades desgarradas da promoção do interesse público.

 

É por este fundamento que entendemos que o art. 41 do Decreto n. 10.024, de 2019 que adotou redação agora reproduzida pela IN SEGES nº 10, de 2020, é o melhor tratamento dado à matéria para este ponto.

 

DECRETO Nº 10.024, DE 20 DE SETEMBRO DE 2019

Art. 41.  Quando permitida a participação de empresas estrangeiras na licitação, as exigências de habilitação serão atendidas mediante documentos equivalentes, inicialmente apresentados com tradução livre.

Parágrafo único.  Na hipótese de o licitante vencedor ser estrangeiro, para fins de assinatura do contrato ou da ata de registro de preços, os documentos de que trata o caput serão traduzidos por tradutor juramentado no País e apostilados nos termos do dispostos no Decreto nº 8.660, de 29 de janeiro de 2016, ou de outro que venha a substituí-lo, ou consularizados pelos respectivos consulados ou embaixadas.

 

Se por um lado estes dispositivos não chegaram a dispensar a apresentação do requisito formal acessório da tradução oficial, pois ainda o exigem como condição para a assinatura do contrato, por outro adotaram postura adequada, em consonância com o art. 30 da LINDB[18], ao uniformizar um modo de cumprimento da formalidade que ao mesmo tempo não provoca, em regra, prejuízo para a correta instrução do processo administrativo e viabiliza a participação destas empresas nos certames licitatórios nacionais.

 

Contudo, caso haja dificuldade na compreensão do documento estrangeiro ou impugnação dos demais participantes à tradução apresentada pela empresa estrangeira, a autoridade competente deve, de maneira fundamentada, decidir o incidente processual e, eventualmente, caso entenda necessário à higidez processual, solicitar a complementação da documentação estrangeira, mesmo na fase competitiva.

 

Esta ponderação em nossa opinião deve ser iluminada pelas particularidades do caso concreto e pode ser precedida por diligências realizadas pelo próprio corpo técnico da entidade licitante para a confirmação da integridade das informações apresentadas.

 

É que como a Lei Geral de Licitações[19] e a Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999[20] propugnam pela possibilidade de diligências saneadoras, e como já assentado a tradução juramentada não é documento habilitatório mas apenas uma formalidade complementar de eficácia, sua ausência não pode produzir a inabilitação do licitante estrangeiro, mas apenas a fixação de prazo para correção da falha, entendimento este refletido no REsp 1231152/PR do STJ já mencionado anteriormente.

 

Assim, a exigência da complementação da instrução do Documento estrangeiro, ainda que ao alcance da autoridade competente, deve ser utilizada com a prudência e a razoabilidade recomendada pelos meios atuais à disposição do gestor para lhe transmitir a confiança necessária a respeito da correção da informação apresentada.

Da dualidade de regimes estabelecidos pelos artigos 28, V e 32, parágrafo 4 da Lei Geral de Licitações e a necessidade de compatibilização destas normas com a IN SEGES nº 10, de 2020.

 

O segundo ponto de análise é o art. 20-A, II, “b” da IN SEGES nº 10, de 2020, que estabeleceu o momento imediatamente anterior à assinatura do contrato para que a empresa estrangeira que não funcione no país apresente seu representante legal.

 

A compreensão deste comando deve ser iniciada pela igualdade de tratamento estabelecida pelo art. 3º, § 1º, inc. II, da Lei no 8.666, de 1993[21]. Este ponto hermenêutico pivotal por um lado significa ausência de discriminações não fundamentadas ao acesso ao mercado, mas por outro deve significar obediência às mesmas regras e procedimentos sempre que adequado e oportuno.

 

Esta isonomia, contudo, deve curvar-se à realidade fática, e atento a isso o legislador entendeu por divisar situações em que as exigências legais devem ser relevadas para que a empresa estrangeira possa apresentar a documentação tal como existe em seu país de origem, que muitas das vezes não irá coincidir com a documentação utilizada no Brasil.

 

É por isso que, como sabemos, o regime de participação de empresas estrangeiras está dividido em duas categorias estanques. A primeira, envolvendo as empresas estrangeiras autorizadas a funcionar no país, tratada no art. 28, V e a segunda que regula a situação das empresas não autorizadas a funcionar no país, disciplinado no art. 32, §4º, ambos da Lei nº 8.666, de 1993.

 

A nota de corte a respeito da aplicação de um ou de outro caso é a necessidade do fornecimento do bem ou execução do serviço ocorrer no país. Isso decorre da regra estabelecida no art. 1.134 do Código Civil que veda o funcionamento da sociedade estrangeira no país sem prévia autorização do Poder Executivo.

 

Segundo Trajano de Miranda Valverde[22] funcionar significa [e]xercer atividade tendente à realização do fim para que foi criada a sociedade anônima. É, em poucas palavras, a regular exploração do objeto social.

 

Rafael Wallbach Schwind sustenta em sua obra[23], com arrimo em lição de Marçal Justen Filho, que o funcionamento ocorreria apenas se a atividade desempenhada pelo estrangeiro fosse continua e permanente, de modo que uma atividade eventual e isolada não configuraria “funcionamento” e, portanto, dispensaria a necessidade de autorização.

 

Não concordamos com esta posição, pois parte do pressuposto de que a regular exploração do objeto social implicaria atuação permanente em território nacional. Em nossa opinião, a regular exploração do objeto social é compatível com a execução de contratos de pronta entrega em nível global, sem que isso implique ou pressuponha permanência de atividades em território nacional. Basta imaginarmos o caso de estaleiros, empresas de material bélico ou demais produtos de alto valor agregado.

 

            Assim, quer nos parecer que todas as vezes em que a execução contratual implicar a necessidade de realização das atividades no país, estarão afastadas as regras voltadas às licitações internacionais.

 

É por conta desta dicotomia contida na legislação que Egon Bockmann Moreira, Bernardo Strobel Guimarães e Lino Torgal[24], entendem que a licitação internacional é figura excepcional em nossa legislação, regida principalmente pelos arts. 32, § 6º , 40, V e 42 da Lei nº 8.666, de 1993, e se limita aos casos em que, ou por conta de haver recursos disponibilizados por ente internacional, ou por conta de o contrato ser executado no exterior, se admite uma flexibilização das regras da Lei de Licitações(...).

 

Tirantes estes dois casos, segundo estes autores, o que estamos a discutir é mais precisamente sobre participação de estrangeiros em licitações nacionais, e neste caso, a regra disposta no parágrafo 4o do artigo 32 da Lei n. 8.666, de 1993, que estabelece uma das poucas regras voltadas às licitações internacionais, não podem ser aplicado às hipóteses que a IN SEGES nº 10, de 2020 ou que o art. 41 do Decreto 10.024, de 2019 pretendem regulamentar.

 

Com isso queremos dizer que não nos parece adequado tanto o Decreto de pregão quanto a IN SEGES nº 10, de 2020 terem reproduzido regras que na maior parte das vezes não poderão ser aplicadas, pois os objetos licitados não comportam a incidência da norma.

 

Isso decorre da compreensão de que em sendo o objeto entregue ou executado no país, estamos diante de situação que a empresa estrangeira deverá estar autorizada a funcionar no país, e, portanto, a regra a ser aplicada é a da igualdade de tratamento inclusive no que se refere aos requisitos habilitatórios. Mais uma vez, pela clareza da exposição, reproduzo trecho do artigo do professor Egon Bockmann[25]:

 

(...) Isso porque não se pode perder de mira que a efetiva atuação de empresas estrangeiras no Brasil depende de chancela prévia por parte das autoridades federais.

Decorre daí que a comprovação da regularidade perante o Poder Executivo prevista na Lei de Licitações reflete uma condição necessária à participação das empresas estrangeiras nos casos em que o objeto do contrato implicar “atuação” em nosso mercado. Dito de outro modo, se a execução do contrato administrativo implicar atividade estável no território brasileiro, a empresa deverá — como toda empresa sujeita ao regime do art. 1.134 do CC — estar autorizada a funcionar aqui.

Por conseguinte, toda vez que o objeto do contrato exigir uma atuação direta da empresa na execução do contrato, o regime de qualificação deve contemplar a observância do art. 28, V da Lei de Licitações. E isso porque assim o exige o direito civil.

É nesse sentido, portanto, que a comprovação da existência de autorização constitui condição inerente à habilitação jurídica das empresas estrangeiras. Esses requisitos, como já anotou um dos signatários, têm por escopo “(...) demonstrar a capacidade e a regularidade quanto a requisitos exigidos pelo Direito relativos à configuração da pessoa que deseja contratar certo objeto com a Administração”.

 

Assim devem ser evitadas as aplicações dos preceitos tanto do Decreto de Pregão quanto da IN SEGES nº 10, de 2020 às hipóteses de licitações cujos objetos devam ser executados em solo nacional, sob pena de flerte à burla dos preceitos do Código Civil mediante a criação de hibridismos não contidos na legislação.

 

Perceba que o que a IN SEGES nº 10, de 2020 pretende autorizar a postergação da apresentação do representante legal, sob pressuposto não declarado de que a constituição de acordo com as leis brasileiras iria ocorrer somente na hipótese de êxito no certame licitatório.

 

Se esta prorrogação nos parece adequada para a tradução juramentada, já aqui nos parece não nos parece a melhor opção, posto se encontrar em aparente rota de colisão com o próprio art. 32, § 4º da Lei nº 8.666, de 1993 que pretendeu regulamentar.

 

Veja que naquele dispositivo, mesmo em licitações internacionais, o legislador não desobrigou a empresa internacional de constituir representante legal para receber citação e responder administrativa ou judicialmente.

 

Neste sentido, não é desimportante repisar que a demonstração da habilitação jurídica para a execução do contrato é característica que deve ser atestada e aferida no próprio procedimento licitatório, e o representante legal é etapa antecedente à constituição da empresa de acordo com as leis brasileiras[26], de modo que dispensar o representante legal para a fase competitiva poderia ser interpretado como uma dispensa da sua própria constituição jurídica.

 

Esta hipótese é refutada pela doutrina[27] por entender se tratar de uma contratação condicional, em especial por que o ato de autorização é discricionário, o que o torna esta participação incompatível com o regime público da Lei nº 8.666, de 1993. Neste sentido, confira pensamento de Rafael Wallbach Schwind[28]:

 

2.5.1.4 Momento de comprovação da autorização governamental

Resta ainda definir qual o momento de comprovação da autori zação para funcionamento no país quando ela for exigível. Poderia tal requisito ser comprovado posteriormente à licitação, ainda que antes da assinatura do contrato? Em tese, até seria defensável exigir que a autorização para funcionamento no Brasil fosse comprovada apenas para a assinatura do contrato, e não já na fase de habilitação. Essa solução possivelmente ampliaria a competitividade no certame. A postergação do atendimento às diversas exigências do Código Civil seria um incentivo à participação de empresas que ainda não operam no Brasil e que somente viriam a fazê-lo se fossem contratadas pela Administração. Entretanto, não é esta a sistemática estabelecida pela Lei nº 8.666, ao menos por duas razões. A primeira delas é que o artigo 28, inciso V, estabelece claramente que o decreto de autorização para funcionamento no país constitui um requisito de habilitação. Logo, deve ser comprovado no momento da habilitação. A ausência de comprovação desse requisito impediria a habilitação do licitante estrangeiro e, consequentemente, afastaria a possibilidade de seu prosseguimento no certame.

A segunda razão é de ordem prática. Se fosse admissível a comprovação de autorização do estrangeiro para funcionamento no país somente no momento da contratação, isso geraria problemas práticos insolúveis. Toda a licitação seria realizada mediante uma condição suspensiva, ou seja, a obtenção de autorização governamental para que o licitante estrangeiro pudesse ser contratado. Entretanto, condicionar o encerramento da licitação e a efetiva contratação a esse evento futuro e incerto causaria problemas graves. Poderia até mesmo afetar o interesse da Administração em contratar. Se o licitante estrangeiro demorasse muito tempo para obter a autorização governamental, ou se nem atendesse os requisitos legais necessários para tanto, o certame restaria frustrado. Assim, nos casos em que a autorização governamental para funcionamento no país for exigível dos licitantes estrangeiros, deverá ser comprovada no momento do exame dos requisitos de habilitação, na forma do artigo 28, inciso V, da Lei nº 8.666. Mesmo nas licitações realizadas com financiamento internacional em que não se aplique o procedimento da Lei nº 8.666, a autorização para funcionamento no país deverá ser comprovada no momento de apresentação dos documentos relativos à condição dos licitantes. Por ser a autorização um requisito previsto na legislação cível, o simples fato de não se aplicar integralmente a Lei nº 8.666 não afasta a necessidade de sua comprovação prévia à realização de qualquer ato que configure “funcionamento” no Brasil.

 

Presente estas considerações, é de se perguntar: quando a regra estabelecida no art. 20-A, II, “b” da IN SEGES nº 10, de 2020 pode ser legitimamente aplicada?

 

Entendemos que seu âmbito de aplicação é restrito e de pouca utilidade prática. Sua incidência deverá ficar restrita às hipóteses em que o objeto da licitação não implicar o funcionamento da empresa estrangeira em território nacional ou de inexistência de atuação direta da empresa estrangeira, nomeadamente diante da formação de um consórcio ou de uma Sociedade de Propósito Especifico (SPE)[29].

 

Contudo, como estas hipóteses parecem deslocadas do âmbito de regulamentação da IN SEGES nº 10, de 2020, entendo que inovação, neste ponto, pode provocar mais indagações do que certezas, e merecia uma maior reflexão.



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